O despertador do celular tocou. Retruquei comigo mesma que queria poder dormir mais uns minutinhos. No escuro, apalpei a cabeceira da cama em busca do interruptor do abajur. Como estava num hotel, não me lembrava onde acendia a… achei!
Acendi a luz pra ver se o brilho me ajudava a despertar. Coloquei uma perna para fora da cama na tentativa de me motivar a abandonar aquele macio edredom. Que sono! O dever do trabalho me chamava, então não podia me dar ao luxo de dormir até tarde.
Caminhei até o banheiro e me assustei com meu próprio reflexo no espelho. Cara amassada, olheira, cabelo bagunçado… “É o que tem pra hoje”, pensei. Segui, então, o ritual matinal: fiz meu culto, tomei banho, arrumei o cabelo, passei uma leve maquiagem corretiva que disfarçou muito bem o cansaço do meu rosto, troquei o pijama por uma roupa social, e o chinelo por um salto alto. Parecia outra pessoa, mas, por dentro, eu continuava com o mesmo sentimento: “Tô muito cansada, não queria sair da cama por nada”.
Abri a cortina do quarto e deixei a luz do sol entrar. Vi meu reflexo no espelho e pensei: “Uau, essa luz me valorizou”. Nesse momento, meu corpo já se sentia mais desperto, e comecei a ver vislumbres de um bom humor. Então, peguei meu celular e filmei um “bom dia” bem pleno para os meus seguidores, como se já tivesse acordado arrumada e animada.
Em pé, perto na janela, vi um cenário contrastante. De um lado, uma bela paisagem composta por árvores, céu azul e prédios imponentes. Do outro, tetos manchados de comércios antigos e casas com obras em andamento. Adivinha qual deles virou foto?
Seleções diárias
Não precisamos nem de um dia inteiro para perceber que a vida virtual, a começar pela nossa, é um recorte de realidades. Ainda que a gente só poste verdades, são apenas metades. Eu poderia fazer uma grande lista sobre os perigos da nossa exposição na rede, mas quero destacar um que adoece a alma de quem está do lado de cá e do lado de lá da tela: acreditar que a vida pode ser recortada.
Recortes de realidade são vistos com normalidade, principalmente por se tratarem de seleções verídicas. Quem se sentiria culpada por postar sobre o buquê de flores que ganhou do namorado pela manhã? Ninguém. Mas quem ousaria postar que o buquê chegou como tentativa de reconciliação após uma briga feia entre os dois? O buquê veio, isso é fato, mas não é tudo.
Mas parece que ao deslizar o dedo na timeline nosso cérebro “buga”. Vemos os lindos recortes de realidade das outras pessoas como se fossem resumos de uma vida inteira. Nesse instante, nossa realidade integral, sem cortes nem censura, entra em contraste com o recorte perfeito dos segundos vividos por alguém. E isso adoece o corpo e a alma. Começa, então, um ciclo doentio, onde um busca provar para o outro o quão interessante sua vida também é.
A exposição cresce juntamente com a depressão. Pode parecer estranho, mas a falta de amor-próprio costuma gerar excesso de autodemonstração. No fundo, essa é uma tentativa desesperada de autoafirmação.
Nessas condições, é comum a gente ver pessoas divulgando informações íntimas, promovendo sua sensualidade em selfies sedutoras, exibindo suas posses e expondo detalhes da sua vida que deveriam ser preservados.
Não somos artigos públicos e de livre acesso, então por que tantas vezes nos colocamos nessa condição? A Bíblia diz que “o mexeriqueiro espalha segredos, mas a pessoa séria é discreta” (Provérbios? ?11:13?). O texto se refere às pessoas que gastam tempo falando da vida dos outros, mas esse princípio nos leva também a refletir sobre guardar os nossos próprios segredos, atentar pela nossa própria segurança e preservar a nossa própria identidade.
Emanuelle Sales (via Imagem & Semelhança)